segunda-feira, 31 de maio de 2010

Transmudar


Eles se amavam com os olhos, com as mãos, com as palavras. Às vezes, nos gestos doces, o amor era como uma suave borboleta. Ia batendo as asas frágeis e delicadas, mal pousando aqui e ali. Amor terno e bom! Em outros dias, se enfurecia como o mar na tempestade. Batia na areia, forte e desafiador. Amor difícil e necessário! Havia outros dias, ainda, que feito um barco na calmaria, boiava num espelho espesso e cheio de sombras. Amor profundo e de contemplação! Em noites que a lua quase mergulhava  na água, dormiam abraçados, num silêncio imenso, sonhando com estrelas cadentes. Amor de paz!  E quando a chuva caia fininha no telhado, cantando uma canção estranha,  as almas trocavam de morada. Os corpos se amavam, mas as almas não sabiam mais a quem  pertenciam.
Elas se casavam na beira do mar. Voltavam com gosto de maresia, encharcadas de felicidade.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Monocromia

Na  paisagem
         o sol boiava pálido
    no vazio da tela

E era só uma manhã
         de quase inverno
     na  janela

Tudo era cinza
          água e céu
    na marina

sábado, 22 de maio de 2010

Um pedaço de estrela


Preciso vir aqui, às vezes, para despejar uma impressão. Registrar uma emoção que  um momento  qualquer despertou em mim. E isso não é a poesia. Não aquela que sai de mim, num instante, sem qualquer motivo ou razão, espontânea, e é nada. Uma faísca apenas, que se desprende da grande labareda que sou eu, dentro de mim. A poesia é como o vento, sopra em qualquer direção e para nada. Vem, vai, retorna.  É   tempestade  de vez em quando, ventania quase sempre,  vendaval ou brisa leve. 

O ator e agora cantor, Wagner Moura, foi iluminar o programa da Marília Gabriela e inundou de brilho, com o seu carisma, a minha tarde, neste sábado. Senti uma enorme necessidade de dizer alguma coisa dele. De falar nele e não 'de nada'.  De escrever sobre como ele é encantador.  E eu que tenho idéias esquisitas sobre muitas coisas, me deparei, de repente, com outras idéias que estão fora de padrão. E todas muito simples e singelas. 

Quando começo a pensar em Deus e como Ele seria, esbarro sempre em constatações do tipo 'não sei' e não devo ter nenhum sentimento de culpa em relação a isso. Lembro das palavras de Mencken, aquele irreverente jornalista americano, da metade do século passado, que quando era inquirido sobre a sua total falta de crença religiosa, dizia que podia falar mal Dele e acusá-lo de todo tipo de crueldades e injustiças, pois Ele o vinha tratando bem e com grande polidez, até. Mas que não podia esquecer o modo bárbaro com que tratava a maioria do resto da humanidade.

Wagner jogou uma pequena, mas vigorosa luz sobre tanta obscuridade. Ele disse, só e apenas, que tudo poderia ser diferente se entendêssemos que Deus somos nós. E eu acrescento que tudo pode partir de nós. A maldade ou a bondade, a dor ou o prazer, a luz ou a escuridão. Tudo. Os céus e os infernos somos nós. Essa felicidade que desejamos eterna, não existe. E depois, nenhum espetáculo, por melhor que seja, pode durar para sempre.  De minha parte, já demoli os altares todos, quebrei  estátuas, apaguei imagens e encerrei as discussões com Deus. Qual seja o sentido da vida humana é coisa que ignoro. Às vezes, suspeito que não haja nenhum.

Mas a outra que há em mim - pois somos vários - me faz lembrar que sou, nesse universo imensurável, um pedaço daquela estrela que brilha no alto, na imensidão do infinito. E minha alma se enche de emoção! Talvez seja a parte divina se revelando em mim...Talvez..


segunda-feira, 17 de maio de 2010

Desordem de mim

            A poesia é isso
           - quando ela bate no peito -
                    descarrilamento da alma
              desassossego.

As palavras saem dos  trilhos sobre os quais deveriam  rodar. E assim, livres, elas não precisam de lógica  ou de bom senso. Correm soltas por campos abertos, desconhecendo destinos.  É assim, quando  a  palavra escolhe ser poesia. Se aventura por caminhos estranhos, muitas vezes  por despenhadeiros, por precipícios, numa corrida insana. Eu sempre a deixo sair, como os amores que teimo em deixar soltos,  feito cavalos selvagens. Deixo o sentimento se extraviar, desamparado, levado  tantas vezes por águas turbulentas, numa enxurrada de emoções. A poesia é assim...



sábado, 15 de maio de 2010

Constatação

Vamos juntos para o mar
            em silêncio
o vento é frio na tarde
      e deixa um vão
            de tristeza
      em nós

Vamos mudos
      caminhando devagar
pra não quebrar o encanto

 Nos olhamos
      com olhar torturado
de ilhas distantes e desertas

Sem espanto   
       tudo é silêncio de pedra
 na gente

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Milagre


Começo a gostar desse meu novo rosto, despovoado de tardes antigas. Sem marcas nem desgosto. Com a minha casa voltada para o sol, para o dia  que nasce. Vejo no longe do mar, um horizonte azul, cheio de promessas. No bolso vazio, carrego algumas mágicas que inventei pra não sentir saudade. Meus barcos espalhei todos,  no reflexo verde das águas. E assim, livre de sonhos e ilusões, reabro as portas e janelas do meu coração.
Vou gostar dessa ressurreição.

domingo, 2 de maio de 2010

Um gesto puro


"Cada um de nós tem, na memória da vida que vai sobrando, 
seu caminhão de lixo que só um dia despejará 
na escuridão da morte.  Grande parte do que vamos 
coletando pelas ruas tão desiguais da existência 
é apenas lixo; dentro dele é que levamos a jóia de 
uma palavra preciosa, o diamante de um gesto puro."
Rubem Braga

Ele me ligou, de manhã, apressado. Fiquei imaginando aonde iria ele com tal pressa. Um amigo quando aparece, depois de tanto tempo e de tão longe, deixa no ar  certa apreensão. Percebi que estava aflito e assustado. Então me disse, com a voz rouca, entre atônito e perdido, que iria morrer. Depois  do silêncio necessário, afirmei que nós todos vamos morrer.

A grande e inexorável verdade, é que ele sabia. Nós não sabemos. Cuidamos para que essa verdade fique distante de nós. É sempre algo que apenas suspeitamos. Mas isso também fica longe, afastado, envolto por uma cortina de fumaça, a nos enganar e distorcer a realidade. Somos, em nossa ingênua credulidade, eternos.

Meu amigo corria, essa manhã. Talvez, fosse ao encontro das brisas frescas do outono. Quem sabe, tivesse lhe assaltado, de repente, um desejo enorme de coisas simples e boas. Vontade de sentir cheiros e ouvir sons. Um impulso irresistível de pular, gritar, saltar, dançar e rir, gargalhar. Não. Nesse momento, a vida poderia ser qualquer coisa, menos razoável. Aliás, a razão era agora, algo que lhe causava grande enjôo. Às favas a razão. De que ela lhe servia nesse instante. Tudo o que queria era se libertar dos deveres todos. Seguir solto ao vento, sem destino. Mas já não haveria tempo. 

Uma tristeza imensa  tomou conta de mim. Tristeza pela vida. Tristeza pelo amigo, Tristeza por fazermos tão difícil o 'ser feliz'. Quero encontrar mais as pessoas queridas, beijar interminavelmente o meu amor e respirar o ar das manhãs de outono.